ferrari, manek e amigos, peço-lhes licença para discorrer um pouco mais sobre o impacto da foto do aylan kurdi. já falei sobre a força política e pessoal dela. quero agora elaborar algo mais sobre seu impacto fotográfico per se.
(antes, devo dizer que concordo com o q o manek cita acima, mas vou me abster de fazer comentários, que os tenho, sobre a modificação da identidade do jovem, tomado por ocidental na aparência mas na verdade curdo. não pretendo me debruçar em profundidade nas relações específicas do conflito na região da síria de onde ele veio - principalmente pelo paradoxo que há no fato de ser o próprio ocidente, através da casa branca, o agente crítico de toda essa desgraça ao equipar primeiro o estado islâmico e dps os exércitos sírio e turco para combater além do EI, os próprios curdos e milícias locais. percebam que interessa bastante aos EUA o massacre de curdos e da sua resistência organizada nos chamados "cantões". portanto, vou me ater especificamente à percepção geral, do senso-comum, que absolutamente não é a minha, nem a real. assim, e de forma simplista, o menino de etnia curda foi "percebido" sem sê-lo como uma criança branca, ocidental, ponto).
há ali uma criança feita vítima por muitas coisas, mas sobretudo pela ignorância dos homens ocidentais. uma criança branca, com corte de cabelo, roupas e sapatos ocidentais.
com a face colada à areia da praia, não tem rosto - o que permite que possa ser qualquer um de nós. é nessa empatia que está, a meu ver, seu imenso, seu inexorável, seu interminável impacto fotográfico.
há milhares de fotos todos os dias que desnudam a desgraça de meninos refugiados em barcos superlotados que grassam pelo mediterrâneo, no mesmo drama dos kurdi; de meninos assassinados pelo tráfico nas periferias do rio, sp, méxico e colômbia; pela desnutrição no sudão; pela exploração do trabalho escravo no nosso nordeste, na china, no paquistão e na índia.
todas, absolutamente todas essas fotos têm um rosto - a do menino aylan não.
preenchemo-la com nossa própria face. a identificação é imediata. o magnetismo da imagem é, a meu ver, ainda maior que sua carga emocional.
todos conhecem o soldado legalista de capa - ele tb não tem rosto. ambas, a foto de robert capa e a nossa foto, são imagens mais poderosas que a da menina vietnamita, trazida pelo nandoespinosa - uma foto igualmente trágica, mas com rosto.
e há na foto o outro personagem - um espectador, passivo (ou compassivo, na foto logo depois) da tragédia. ele completa a cena magistralmente. em sua atitude contemplativa, de quase indiferença, traz ele também um signo tremendo de crise. é um agente da nossa urgência. está ali pra desmascarar a nossa inércia, para sugerir a nossa apatia. pra caricaturar o nosso descaso, até então, com o drama dessa gente.
outro dado que contribui para o impacto da fotografia em questão é a narrativa que ela encerra: uma mensagem simples, direta e sobretudo precisa. seu discurso se descortina facilmente, resumindo de forma concisa e absurdamente cristalina uma história que, por outros meios, teria múltiplos e complexos significados (e os tem). uma imagem que consegue ser explícita sendo subliminar, que consegue ser de fácil leitura ao mesmo tempo que é complexa, multifacetada, plural.
isso é algo imensurável, absolutamente ímpar, único, na qualidade de uma fotografia em todos os seus principais pilares - estrutura, signos, narrativa, contexto.
um último aspecto é o fato da foto ter viralizado em poucas horas e em escala planetária graças às redes sociais. de todas as fotografias afetadas pelo fenômeno, a de aylan certamente é a que gerou a maior repercussão até hoje. escrevi isso antes, e sustento: uma foto, e o mundo já é outro.
penso eu que daqui a 100 anos estaremos ainda comentando a tragédia e a foto de aylan kurdi, a foto mais relevante das últimas décadas. ou alguém duvida?