Autor Tópico: Semente sob a terra ( Continuação de A Semente da vingança)  (Lida 1128 vezes)

Macrolook

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Online: 24 de Dezembro de 2018, 03:18:05
Biblioteca, palavra que havia escutado, passei em frente de uma, a da vila, nunca tinha entrado, segundo minha irmã, era um lugar onde haviam histórias de pessoas diferentes, era um dos lugares favoritos dela, me lembro das vezes que ela ia lá, toda tarde, um dia, uma vizinha, disse a minha mãe para segui-la, pois era difícil acreditar que uma menina iria a biblioteca, ler livros sem figuras, tola, minha mãe a seguiu, e percebeu seu erro, Silvia, era muito querida lá, todos a conheciam, minha mãe se enchera de orgulho e vergonha, nunca mais duvidou de minha querida irmã.

Fiquei com medo de entrar, me dei conta que estava fedido, todo sujo, percebi isso quando vi que as pessoas que passavam por mim olhavam com nojo, outras apontavam, meninos me jogavam pedra, uma das pedras acertou meu peito, faltou ar, era ruim demais, corri, fui para o cemitério, lá era calmo, eu não tinha medo, eu cabia eu uma fresta de um túmulo grandão, parecia uma casinha preta, dormi ali várias vezes.
O silêncio daquele lugar era esquisito, conseguia escutar meu coração bater, foi a primeira vez que escutei,
foi um misto de surpresa e medo, será que alguém mais ouviria? Fiz minha prece, cansado, adormeci.

No dia seguinte, acordei com o barulho do sino da igreja, sempre tentava acordar antes do cemitério abrir ou do coveiro acordar, tinha medo que descobrissem meu esconderijo, era um lugar seguro, a maioria das pessoas tinham medo desse lugar, eu nunca entendi, afinal, desde que dormi ali, nunca um morto veio me incomodar.
Estava com muita fome, mas onde poderia comer? Pedir? Não, tinha medo que se pedisse saberiam que eu era menino abandonado e chamariam o juizado, me mandariam para o orfanato e nunca mais veria minha mãe, meu pensamento é interrompido com um cheiro delicioso, na rua, um homem comia algo, era pastel!
Um estalo veio em minha mente! A feira, era dia de feira, e onde tem feira, tem comida! Perguntei ao homem onde ele havia comprado o pastel, ele me disse que foi em um bar, bem perto dali, apontou e foi embora.
É, não era dia de feira, era um dia da semana, não me lembro qual, nessa época, feiras aconteciam em sua maioria no domingo, decidi ir até o bar assim mesmo.

Das poucas vezes que escutei algum conselho da minha mãe, pois a via raramente, ela sempre estava trabalhando ou dormindo, ela me disse algo que carrego até hoje, "filho, nada nessa vida é grátis, desconfie sempre se alguém te der alguma coisa, normalmente querem algo em troca ou então tem uma segunda intenção." Ela sempre falava isso quando algum estranho oferecia presentes para nós ou alguma criança próxima.

No bar havia uma máquina de pinball, fiquei encantado com ela, tinha muitas luzes, sons que nunca tinha ouvido, fiquei ali, paradão naquela maravilha, todos meus problemas não existiam mais, mesmo levando um empurrão do cara que colocou a ficha, eu fiquei ali curtindo, hipnotizado por aquele negócio que para mim, parecia uma nave espacial.
A dona do bar, perguntou se eu ia jogar, eu disse que estava olhando, não tinha dinheiro, ela disse então para eu não atrapalhar, mas que poderia olhar desde que não encostasse na máquina.

Ela era bem gorda, muito gorda mesmo, depois da máquina, comecei a olhar para aquela mulher enorme, ela andava estranho, andava se balançando e respirando forte, ela derrubou uma garrafa de café e não pegou, eu achei estranho aquilo, fui até onde estava a garrafa, catei e dei para ela.
Agradecida, ela sorriu, faltavam uns dentes e os outros, meio pretos e amarelos, ela me perguntou se eu era mendigo, eu disse que não, que tinha mãe, que eu estava brincando por aí e me sujei, ela, fingiu que acreditou e eu achei que ela tinha acreditado. Começou a chover.
Percebi que o bar estava com o chão sujo, peguei a vassoura e uma pá e comecei a limpar, ela viu, mas não disse nada, depois, vi que tinha umas garrafas e caixas para serem organizadas, já tinha feito coisa bem pior, e precisava fazer uma hora ali, então, comecei a arrumar, ela depois de ver tudo isso, me disse que não tinha dinheiro para pagar, me deu uma salsicha em conserva, um ovo rosa e um torresmo, tirando uns coquinhos e mangas, foi minha refeição depois de dias sem comer.

Agradeci ela muitas vezes, feliz e cheio de energia, procurei mais coisas para fazer, nisso chegam fregueses, pedem coisas, percebo a dificuldade dela em andar, tento ajudar, mas ela não deixa, serve os clientes e me chama num canto e diz que eu estou muito sujo e fedido para atender as pessoas, me diz para ir embora, pergunto se não posso ajudar em algo, ela diz que não, vou embora, neste dia, durmo atrás de uma banca de jornal, no dia seguinte, acordo cedo, e volto ao bar, mas ela,a senhora gorda, não chega nunca, vou dar uma volta, vejo meninos de rua brincando, mas fico com medo deles, percebi que devo arrumar roupas limpas, dessa forma, não serei confundido com menino de rua, e assim fica mais fácil de andar por aí.

Decido voltar a casa do namorado de minha mãe, Joaquim. Lá, tem roupas minhas, posso pegar algumas e me limpar, estava com muita coceira, sem saber, que era falta de banho.
Com muito medo, mas sem opção, volto até perto da casa, por sorte, Vilson está na pracinha brincando com os viralatas, me aproximo dele, mas a recepção é fria e esquisita, ele apanhou muito do pai, e tem medo que aconteça de novo, caso ele saiba que falou comigo.
Peço a ele que chame Nika, que preciso de roupas, ele vai chamar a irmã, esta quando me vê, me abraça e chora, conto a ela o que preciso, ela fica triste e diz que o pai dela, jogou todas as coisas minhas e da minha mãe fora, que não pode fazer nada, apenas me arrumar uma roupa do Vilson e uma barra de sabão.
Ela me diz que vai falar com Tico, que eu esperasse na praça perto da padaria, assim que ele chegar, iria até mim.
Vou, anoitece, e ninguém vem, faz frio, quando estou indo embora, aparece Isabel, pega na minha mão e me leva com ela até a casa, lá, me dá uma sacola com alimento, roupas e uns trocados, disse que se eu quiser, posso tomar um banho, pois o pai foi viajar, mas que a vizinha dedo duro logo chegará.
Pergunto se ela sabe algo sobre minha mãe e onde ela está, ela baixa a cabeça, e diz não saber nada, mas que se souber, vai me falar.
Tomo o melhor banho da minha vida, ela me ajuda, estou só cascão, cheio de coceira, ela cuida disso com uma pomada, com lágrima nos olhos, ela me pede para ir embora, mas que, uma vez por semana, ela deixará uma sacolinha com alimento e roupas em uma capelinha da pracinha, e que se encontrará lá comigo, sempre que possível.
Agradeço Isabel com um beijo, pego minhas sacolinhas e vou em direção do meu abrigo, o cemitério.

Continua...







« Última modificação: 24 de Dezembro de 2018, 03:33:51 por Macrolook »
Comida é arte.


Elder Walker

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Resposta #1 Online: 27 de Dezembro de 2018, 13:36:26
Já perguntaram em outros "causos" por você publicados aqui, mas no caso deste acho ainda mais válido: essa história é sua? Digo, além de narrador, você vivenciou tudo isso mesmo? Pergunto pois pode ser outra pessoa ou até mesmo uma ficção, o que continuaria sendo interessante, sem demérito aos textos...
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Macrolook

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Resposta #2 Online: 28 de Dezembro de 2018, 00:54:55
Já perguntaram em outros "causos" por você publicados aqui, mas no caso deste acho ainda mais válido: essa história é sua? Digo, além de narrador, você vivenciou tudo isso mesmo? Pergunto pois pode ser outra pessoa ou até mesmo uma ficção, o que continuaria sendo interessante, sem demérito aos textos...
Hey man!
Olhe, são relatos baseados na vida real, difícil de acreditar não é mesmo? Se digo que é verdade, não acreditam, então digo que é ficção baseada na vida real, a arte imita a vida, pois viver é ordenar a entropia, que sempre vencerá um dia, mas enquanto esse dia não chega, vivemos lutando contra tudo que tem para dar errado.
Grato pelo comentário e leitura!
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