Autor Tópico: A Semente da vingança  (Lida 659 vezes)

Macrolook

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Online: 23 de Dezembro de 2018, 03:14:33
— Beto, Beto, acorde, acorde, sua irmã, morreu! E assim me recordo de como despertei para a consciência humana neste dia, as memórias, até hoje, são nítidas, diferentes da maioria, que são etéreas, desaturadas e se esvanecem como fumaça rala.
Me lembro que desci da beliche, de pijama, descalço, segui o Vilson, menino que morava conosco, era filho do namorado da minha mãe, ele, dois anos mais velho que eu, me guiava até o local do acidente.
Chegando lá, vi uma multidão, fomos passando entre pernas, bundas, quando derrepente, um policial nos pegou, nos tirou de lá a tapas, me lembro de ter visto apenas um caminhão azul, um muro destruído, muita gente gritando e muitos gritos de dor, procurei minha irmã, mas não a vi, após isso, nunca mais me lembrei dela naquele momento, suas memórias se apagaram, acho que minha mente deu um delete nas cenas ou realmente, eu nunca cheguei a ve-la morta.

Minha mãe pirou, só chorava, gritava, desmaiava, voltava a si, gritava o nome da minha irmã, Silvia, não comia, só chorava, foram semanas assim, até que um dia, o namorado dela, na época, policial, chamou o pessoal do manicômio e a levaram, ela ficou por lá muito tempo, meses acho, pois era criança, tinha 4 anos, o tempo para as crianças é maior, mas lembro que Silvia faleceu no começo das aulas, ela morreu na frente da escola. Enquanto minha mãe estava internada, eu morei aqui e ali, acudido por vizinhos ou pelos filhos do namorado dela, que ficaram com pena da minha situação, alguns eram mais velhos, entre 13 e 15 anos, nesta época, início dos anos 80, era comum crianças já trabalharem e serem arrimos de família, eram quatro filhos, sendo o Vilson, o caçula, Nika a seguinte, tinha 8 ou 9 anos, Tico, tinha uns 13 e Isabel, a mais velha, 15 ou 16 anos.

Foram maravilhosos comigo, cuidaram de mim melhor que muito adulto na época, a maioria dos adultos, sabiam de minha situação e se aproveitavam com pequenos trabalhos, nunca pagos, nem com alimento, nem abrigo, apenas para tirar proveito, comprava cigarro, pinga, carregava sacolas mais pesadas que eu, ia em feiras, bares, nos correios, pagar contas, limpar banheiros, quintais, tirar lixo, fazer trabalhos repetitivos como adesivar envelopes, entregar jornal, até desentupir fossa já fui obrigado a fazer.

Nesse meio tempo, chorava, rezava, pedia minha mãe, me perguntava o por quê de tudo aquilo, de certo, eu era um menino mau e possivelmente estava sendo castigado, seria um teste de deus? Por que ele havia levado minha tata, me deixado sozinho, eu ficava com medo que minha mãe nunca mais voltasse e tivesse que viver daquele jeito para sempre. Foi a primeira vez que pedi algo a deus, foi a primeira vez que tentei com força, me comunicar com ele, ia nas igrejas, todas que via, eu entreva e rezava, antes de dormir eu sempre orava:
— Papai do céu, me desculpe se fui um menino ruim, prometo ser mais bonzinho, obedecer os mais velhos, não responder, falar nome feio, nem atirar pedra, prometo comer toda refeição, mas por favor, devolve minha tatinha, eu quero minha mãe, estou com medo, prometo que nunca mais peço nada...rezava o pai nosso, e fazia isso até adormecer.


Em resposta, o silêncio, o vazio, as noites frias dormindo em varandas dos outros, as vezes em caixas de papelão, quando o policial estava trabalhando a noite, os filhos deles deixavam eu dormir lá, até que um dia um vizinho contou e todos eles apanharam, ele disse que chamou o juizado de menores e eu não queria ir para lá, ouvi histórias horriveis sobre este lugar, orfanatos, o Tico, havia estado em alguns, e ele era um menino corajoso, não tinha medo de quase nada, exceto do seu pai e dos orfanatos.
Fugi, corri como louco, até não saber onde estava, até hoje não sei se realmente ele chamou, ou se disse isso para se livrar de mim.

Neste dia, começa minha saga, sozinho, sem ter onde ir, noto, que a partir desse dia, estou só, tudo fica mais claro, minha mente parece ficar mais viva, é um misto de medo, tristeza, autopiedade e ódio...
Não sabia o que fazer, estava molhado de medo, com fome, com sede, com frio e atento a tudo, parecia um animal ameaçado, aprendi a me esgueirar, me esconder, tinha medo dos adultos, eu era fraco, e pela primeira vez na vida, tive noção da minha fragilidade.

Em todo esse mar de angustia, minha única vantagem e arma neste inferno eram as lembranças da minha irmã e de como ela era diferente, andando pelas ruas, pegava jornais e lia as tirinhas, eu já sabia ler um pouco, Silvia, que adorava a leitura, se encantou ao aprender a ler, e ela tentava contagiar a todos com sua devoção a leitura, ela lia tudo que via pela frente, ela me encantava com suas histórias, com sua gana pelo saber, foi seu legado, sua herança, ela foi tirada de mim, aos nove anos...
 
Ainda assim, ela mora na minha mente, e é uma de minhas consciências, é meu lado bom, emotivo e calmo. Recordo sempre, para nunca esquecer, e claro, as memórias e fantasias podem se fundir, mas não importa, desde que não a esqueça, ela pode ficar o tempo que quiser.
Não ouço vozes, apenas pensamentos que as vezes vem do nada, e a primeira vez que isso aconteceu, fiquei assustado, e me perguntei:
—Quem está na minha cabeça? E ao mesmo tempo pensei, preciso de um lugar seguro para ficar durante o dia, logo veio a resposta, biblioteca!

Continua...
« Última modificação: 23 de Dezembro de 2018, 03:30:03 por Macrolook »
Comida é arte.


Roberto Dellano

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Resposta #1 Online: 23 de Dezembro de 2018, 09:22:07
Sem palavras...

Aguardando a continuação!