Autor Tópico: Advices for the young at heart ( continuação Semente sob a terra)  (Lida 671 vezes)

Macrolook

  • Trade Count: (1)
  • Freqüentador(a)
  • **
  • Mensagens: 495
Caminhando no escuro, as ruas de parelelepípedo, eram pouco iluminadas naquela época, a maioria quebrada ou queimada, da casa da Nika até o cemitério eram treze quarteirões, logo, vejo alguém se aproximando, mudo de calçada, a pessoa muda também, começo a andar mais rápido, logo, saio em disparada, então escuto meu nome:
—Beto, ei, Beto, espere, é o Tico, pare aí ô! Reconheço sua voz, desacelero, fico feliz em ve-lo, arfando ele e eu, começamos a dar risada, ele me diz:
—Caramba meu, você está ligeiro, seu magricela, isso é bom! Olhe, vamos sentar ali, preciso te falar umas coisas!
Me desculpe pelo meu pai, ele é bicho ruim mesmo, eu já fugi de casas algumas vezes, mas em casa é melhor que orfanatos e a FEBEM, vou te passar umas dicas, umas coisas, que precisa saber... com o rosto sério e firme ele diz:

Primeiro, nunca fique sozinho com um adulto, seja homem ou mulher, tem adulto que vende criança, que faz coisa ruim sabe, enfiam coisas no bumbum, te batem e podem até te matar, por isso, é melhor evitar caronas, ajuda de graça e principalmente coisas de comer, pode ser que tenham remédio pra dormir, tive amigos lá do orfanato e da FEBEM que passaram por isso. (conto para ele da senhora do bar e ele me dá um cascudo de leve, mas diz que tive sorte).

Segundo, quando for dormir na rua, procure lugares que você pode entrar e adultos não, mas, cuidado com os bueiros, se chover, você pode morrer afogado, ah, e nunca durma direto no chão, use papelão, um mendigo amigo meu me ensinou isso, você pode morrer de frio ou ficar muito doente da respiração.

Terceiro, quando tiver vontade de ir no banheiro fazer cocô, evite os banheiros públicos, da praça, da rodoviária, pois nesses lugares estão os caras que gostam de criancinhas, lá eles te agarram e fazem coisas horríveis, use banheiro de bares movimentados ou padarias, se apertar, terrenos baldios e moitas, só tome cuidado para não pisar em outros cocôs, eu já pisei e dá um trabalhão pra limpar, eca!

Quarto, se sentir muita fome e for dia de semana, vá em escolas no horário do recreio, a molecada nunca come tudo, tem até criança que joga o lanche fora para dizer que comeu, aí, bem, você já sabe.
Evite comer a merenda, as professoras estão por ali, mas se for escola grande, pode ir, evite as que usam uniformes, sabe o que são uniformes né?
Se for fim de semana, tem feiras de sábado e domingo, lá, comida, fruta e trabalho, sempre tem.

Quinto, evite repetir os mesmos lugares durante a semana, tipo, as pessoas começam a reparar em meninos sozinhos, sem os pais, faça amizades, mas, é melhor assim. E quando for ir ao seu "cantinho" evite passar pelo mesmo lugar, assim, não fica "manjado", sabe, fácil de saber por onde anda e a que horas, sacou molecão? Pode ser que não entenda, mas obedeça, sei do que tô falando.

Assim que terminou seus conselhos, ele pôs a mão no bolso e me deu um objeto, era um canivetinho, ele me ensinou a usar e afia-lo, disse que poderia me defender com aquilo, caso alguém me agarrasse e tentasse fazer mal.
Perguntou onde estava ficando, contei que no cemitério, ele espantado, me perguntou o por que desse lugar, respondi:
—É onde minha tatinha está...

Escutei um soluço, ele parecia ter engolido algo seco, foi uma longa pausa, e então comentou que lá era seguro, pois o coveiro era um senhor bom, velhinho já, que provavelmente sabia que eu estava ali, mas, não quis se envolver.
Me acompanhou até o cemitério, e me fez repetir todos os conselhos que ele havia dito, exaustivamente, até ter decorado tudo, depois fomos conversando sobre coisas da vida, ele, me ensinando o que sabia, era o meu "irmão" mais velho, meu amigo, percebia sua preocupação, ele comentou que estava procurando um lugar para eu ficar, que tinha uma senhora que vivia sozinha perto do trabalho dele, e que recentemente havia perdido seu neto, para que eu aguentasse mais um tempo, quem sabe, daria certo.

Chegando em nosso destino, ele me deu um dinheiro e um papel com um endereço, e que se algo acontecesse comigo, principalmente o juizado me pegasse, para dizer que vivia nesse lugar.
Ele me falou:
—Decore esse endereço e esses nomes, são os donos da casa, são pessoas importantes, estão viajando, diga que é filho do caseiro deles ok? Não é longe daqui, pegue esse ônibus e vá lá ver o local, você tem  cinco anos, ainda não passa pela catraca, aproveite e evite ficar sujo, semana que vem te ensino a lavar roupa e tomar banho nas fontes e alguns lugares.
Parando na parte posterior do cemitério ele lembra de algo, embaixo da "japona" que ele abre e me diz:

—Ah, a Nika me pediu para te dar isso, ela disse que vai te ajudar a melhorar sua leitura. Tome aí, isso me dá dor de cabeça hehe!

Ele me dá um livro grande que estava embaixo de sua camiseta, em seguida, me ajuda a pular o muro do cemitério, sentado em cima do muro, me despeço do Tico, ele me manda descer logo, do outro lado, apenas escuto seus passos se distanciando, procuro meu "ninho", pego uma vela de um dos túmulos, estava ansioso para ver o livro, seria o primeiro degrau, intitulado a Cartilha Pipoca.

Continua...



« Última modificação: 28 de Dezembro de 2018, 00:59:03 por Macrolook »
Comida é arte.