Autor Tópico: Midnight (continuação de Reluz)  (Lida 970 vezes)

Macrolook

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Online: 28 de Dezembro de 2018, 03:49:03
A espinha gela, desperto com um frio demoniaco, alguém havia jogado uma bacia de água em mim, assustado, tropeço, enquanto recolho minhas sacolas levo um tapa na cara, horrível, sem como descrever, nem todas onomatopéias do mundo e adjetivos conseguiriam nomear o que senti naquela hora, dor, frio, vergonha, medo, susto, gritos no meio daquilo tudo me traziam para a realidade:

— Sai daqui pivete, vou te matar moleque, pensa o que? Tome seu rumo trombadinha!
Resvalei e bati com os lábios na mureta da varanda, tenho a cicatriz até hoje, tinha amarrado as sacolas todas juntas, outro truque que Tico me ensinou para não perde-las, saí correndo, era noite ainda, estava escuro, sei lá que horas eram, madrugada pelo jeito, corri, senti gosto de sangue na boca, gosto férreo, demorou horas para que me desse conta do que havia acontecido, estava ensopado, com frio, machucado, joelho inchado e boca rasgada, chorei, o gosto salgado das lágrimas se misturavam ao sabor férreo do sangue, o frio cortava minhas costas, o medo se apossava de mim, mesmo assim, precisava encontrar um lugar seguro, me secar, me recompor, sentia saudades do calor da minha mãe, dos cafunés da minha irmã, do conforto de um lar, de um teto.

Orei, pedi ao papai do céu ajuda, novamente, apenas o silêncio como resposta, logo, vejo uma viatura se aproximando, lembro que viaturas leval ao juizado, junto minhas coisas e corro feito louco, me lembro de um local, o lixão da vila, rumo para lá, a viatura passa longe, chego ao lugar com odor fétido, onde poucas pessoas se aventuram, é o pior da sociedade, ninguém vai lá, além da escória, e de mim.

Próximo a esse lugar putrido, encontro outras pessoas, maltrapilhas, fedidas, porém, solícitas, me acolhem, me ajudam, adormeço, fico a mercê de estranhos, meu corpo se desliga, penso que estou indo me encontrar com a tata, tudo escurece, acabam ali minhas memórias.
É de manhã, sinto cheiro de sopa, abro os olhos, vejo pessoas a minha volta, o cheiro é mais forte que qualquer coisa, inclusive a dor na boca.

Assustado, fico sem saber o que fazer, pensar ou agir, olho, analiso a minha volta, animal arisco, não sou, sinto, escuto uma música, Maria Bethania, a frase se mistura com meus pensamentos, sabia que arisco era um animal selvagem, contos da minha irmã, milhares de raciocínios se fundem com a realidade.
Logo, uma voz plácida surge e me devolve a sanidade:

—Ei garotinho, não tenha medo, não lhe faremos mal, fique calmo.
Palavras que me acalmam, uma voz feminina, pensei em ser um anjo, e que eu já estava morto...
Olho, vejo uma menina com um vestido azul sabão em pó, com bolsos com as bordas e gola em azul marinho, nunca me esquecerei desse vestido e da moça que estava nele, cabelos na altura do pescoço e cacheados, negros como a noite, sua pele, cor de canela, seus lábios grossos, de sua boca grande, saia uma voz suave como espuma de leite.

—Me chamo Punna, te encontrei caído próximo daqui, trouxemos você, tive que abrir suas sacolas, troquei sua roupa e encontrei algum dinheiro nas suas meias, tive que comprar remédios com eles para sua febre, não se assuste pequenino.
A Abraço, aperto, choro durante um bom tempo, até minhas lágrimas secarem, adormeço em seus braços, não quero mais despertar, a realidade é cruel, parece ser um sonho, mas logo, aquele cheiro horrível de carniça me acorda, e vejo a minha volta, tudo é feio e sujo, as pessoas são estranhas e miseráveis, parece um conto de terror, mas vejo que são esses seres estranhos que são os bons, diferentes das pessoas bem vestidas e arrumadas que me viraram as costas ou me repudiaram.

Começo a perceber que estava errado, que o que via no mundo não era bem verdade, e que a realidade era muito mais dura do que se via na televisão e nos contos de fadas.
A dor de sentir tudo aquilo não era nem de longe maior que a dor emocional, aquela que te corrói por dentro, te faz sentir vivo e não querer estar, te faz ansiar a morte, mas sem saber, te faz querer dormir e não acordar, mas na mente de um garotinho, faz parecer um sonho, um pesadelo, um castigo, que breve irá passar, assim que isso tudo acabar, irá acordar em sua casa, como em um comercial de margarina, onde tudo está bem e sua família é perfeita... mas o garotinho não sabe, que a margarina é falsa e que a família nada mais é que uma ilusão feita por atores que nunca se viram.

Nesta noite infeliz e fria, fica uma recordação, uma lição para toda a vida, onde a inocência é encharcada com a maldade de pessoas vis, que judiam de uma criança que repousa sem teto em uma varanda, marcando para sempre uma alma, que jamais esquecerá o que passou, seu crime, se proteger do frio e buscar repouso em uma varanda que não era sua.

No lixão, ao fundo, em um rádio de pilha tocava uma música, nunca vou me esquecer, leva o título deste tópico, depois de um tempo, descobri a cantora e o nome dessa música que marcou esse episódio, coinciedentemente, a cantora tem o mesmo nome de uma linda e bondosa garota chamada Nika, que muito me ajudou.
Por anos pensei que fora delírio de minha mente febril, mas essa música realmente tocou, nos meus ouvidos e muito mais profundamente em meu coração.

Começa a crescer um sentimento que nunca havia sentido antes, era uma dor no peito, muito aguda, uma coisa ruim, não era apenas medo, era algo mais, foi a primeira vez que senti o poder do ódio.






« Última modificação: 28 de Dezembro de 2018, 03:55:53 por Macrolook »
Comida é arte.