Transcrevo aqui apenas uma parte do artigo de Ronaldo Entler, publicado na Studium.
Veja o artigo completo em:
https://www.studium.iar.unicamp.br/40/11/index.html...
"Algumas fotografias se tornam emblemáticas não porque sejam inquestionáveis quanto à sua fidelidade aos fatos, mas porque aquilo que constroem dá expressão a certas angústias produzidas pela história. Pesquisadores levantam a hipótese de que o miliciano fotografado por Robert Capa (1936) não tenha morrido naquela ocasião[3], e Robert Doisneau confirma que o beijo fotografado em frente ao Hotel de Ville (1950) foi previamente negociado. Notícias como essa deixam um sentimento de traição, e a constatação de que as fotografias mentem. Ainda assim, essas imagens persistem. Não importa que sejam construções, elas alegorizam melhor do que qualquer outra imagem o ímpeto de resistência de um povo que luta contra seu ditador (Capa), e o afeto que irrompe numa paisagem que, havia pouco, era também um espaço de conflito e dominação (Doisneau).
Imagem 3
Robert Capa, A morte de um miliciano, 1936 / Robert Doisneau, O beijo do Hotel de Ville, 1950.
Fotografias como essas atualizam por uma via técnica um modo muito peculiar de construção alegórica: as narrativas míticas. É preciso saber que mito, em seu sentido pleno, escapa à nossa noção corriqueira de verdade ou mentira. O mito é uma analogia construída por fragmentos de vivências, lapidada pelo tempo, que não apenas noticia um acontecimento mas faz reviver ciclicamente aquilo que narra. Ela é uma forma eficaz de aplacar, mesmo que provisoriamente, as forças caóticas que uma sociedade arcaica enxerga na natureza para que a vida social se organize. São construções tão coesas e pregnantes que, mesmo fora de seu contexto, seus conteúdos ainda nos orientam: já não acreditamos nos deuses do Olimpo, mas ainda recorremos às narrativas gregas para pensar fenômenos complexos que moldaram nossos comportamentos. De modo semelhante, apesar de denunciadas em suas artimanhas, o que aquelas fotografias dizem ainda nos importa. Nada a ver com fidelidade, mas com a eficácia poética com que as imagens organizam nossas memórias."