Alerta de post longoAqui nos EUA, eu, assim como todo mundo, em janeiro de 2020, comecei a ouvir os primeiros sinais da pandemia se aproximando. Lembro de achar "a coisa mais importante nessa doença é evitar que o paciente morra enquanto se recupera; é sério mas, se não faltar hospital, vai ficar tudo bem". Minha divisão foi encerrada, mas consegui sem grande dificuldade trabalho em outro departamento.
Até que comecei a ouvir as notícias de grandes perdas econômicas. Crise e demissões. Comecei a trabalhar de casa. Pensei "A empresa me trouxe pros EUA, tenho 20 anos de trabalho aqui. Não vão me mandar embora". Então, dia 5 de maio (foi aniversário 4 dias atrás) fui demitido por zoom da única empresa na qual trabalhei.
Primeiro, a gente se sente sem chão. Todo nosso planejamento dos próximos dias e meses, tudo por água abaixo. E subitamente a gente tem nas mãos um tempo enorme. Isso pode ser uma coisa muito ruim, se a pessoa fica remoendo o passado e se deixando levar pra um estado de torpor. Me dei ao direito de planejar passar uns três dias na fossa e depois sair disso. Nesses três dias, dormi bastante e vi TV; acabado este período, me forcei a levantar e avaliar minha situação: a empresa me deu um ano de salário, o que me deu bastante segurança quanto ao futuro próximo, mas sei que muita gente não tem o mesmo benefício, o que me deixou triste, porém ao mesmo tempo motivado a sair logo do marasmo.
Nesse período, descobri que não foi meu conhecimento técnico no meu trabalho que me rendeu reputação, embora tenha ajudado: o que me diferenciou todos os anos trabalhando com colegas, fornecedores e clientes (vários viraram meus amigos) foi a capacidade de construir relações - coisa que nunca achei que tivesse. Assim, pouco tempo depois de ser demitido, tive contato de vários amigos, lamentando o ocorrido e avisando que, assim que houvesse oportunidade, estavam interessados em me chamar pra trabalhar com eles.
Com a continuação da crise e pessoas trabalhando de casa, foecei-me a olhar pra tudo aquilo que as pessoas agora achavam necessárias, mas que não tinham tempo ou habilidade pra fazer em casa: consertar coisas, pequenas reformas, etc. Assim, passei os meses seguintes trabalhando com marcenaria (perdi a conta de quantos móveis fiz por encomenda ou comprei+montei). Fiz ajustes de ambientes pra teleconferência: uns livros no plano de fundo, uma iluminação mais legal, um sistema com espelho falso pra parecer que o usuário está olhando pra câmera, quando na verdade ele olha pra tela...
Aliás, esse parece ter sido um ramo que não viu crise nos EUA: este tipo de trabalho ficou mais caro e mais raro também. Pra ter uma ideia, tivemos uma
tempestade de neve no Texas. A quantidade de coisas que pode dar errado em um evento climático desses é enorme. No caso, muitos, mas muitos mesmos canos de água se romperam. Consertei vários. Um amigo me ligou reclamando, que ele havia ligado pra um profissional duas semanas antes, e o cara ainda não havia ido. Como eu estava com tempo naquele dia, fui consertar. Meu amigo ligou pro profissional dele, avisando que eu havia ido e que ele não precisaria mais ir. O profissional pediu meu contato, pra eu conseguir ajudar na demanda dele...
Aproveitei o tempo também pra ficar mais com as crianças e aprender a cozinhar pra elas. Não fui muito longe nessa última tarefa, mas posso me orgulhar de dizer que hoje as crianças sabem lavar, secar e guardar as próprias roupas, além de arrumar o próprio quarto. Mas se houve uma melhor coisa que pude extrair de tantas coisas ruins que aconteceram, foi essa: poder passar mais tempo com os pequenos.
Lembra que vários amigos haviam oferecido emprego? Pois é, isso em alguns momentos leva a gente a escolhas que nunca havíamos considerado antes. Em abril, recebi duas propostas de emprego: uma com equipamentos que conheço bem, bom salário (compatível com o de antes da demissão), mas teria que ir pro escritório todo dia. Teria que viajar bastante. Haveria excelente chance de crescimento, pois a empresa quer abrir filial no Brasil e precisará de um gerente geral no país.
A outra opção, trabalhar com algo que só vi de relance, em empresa pequena, ganhando menos. Porém trabalharia de casa, em horário flexível. Fazendo as contas (gasolina+tempo+pedágio+creche das crianças), e a diferença de salário compensou. Juntei-me à empresa (que é de um amigo norueguês que conheci em 2002) 3 dias antes de comletar "aniversário" da demissão. Está sendo um aprendizado enorme pois além de aprender coisas novas, estou aprendendo norueguês, pra não obrigar todo mundo a fazer reunião em inglês só por minha causa.
Tive muita sorte. Não tive perdas pessoais por causa da pandemia; perdi o emprego mas encontrei outras atividades que me deram muito prazer, se não em fazê-las, em ajudar quem precisava que elas fossem feitas. As crianças voltaram à escola e estão empolgadas com o fim do ano (que nos EUA é no final de maio), embora eu ache que vai ser uma loucura trabalhar de casa com elas aqui: vai ser mais um novo aprendizado.
O que posso dizer é: a pandemia vai passar. Cuide-se e cuide dos seus, pra diminuir a exposição. Veja quem precisa de ajuda e ajude, pois a recompensa vem de maneiras que a gente nem espera. Finalmente, acredite na ciência.