Autor Tópico: "Um olhar sob suspeita"  (Lida 2368 vezes)

lambe-lambe

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Online: 29 de Março de 2008, 01:55:10
Para quem se interessa pela questão da linguagem fotográfica não deixem de ler o artigo "Um olhar sob supeita", de Annateresa Fabris, professora da USP e referência nos estudos de artes visuais, pois, apesar de tratar de um fotógrafo russo, do início do século XX, as questões elencadas não deixam de ser atualíssimas. Além disso, o artigo é uma aula de fotografia, nos faz pensar sobre uma série de questões.

O artigo é facilmente encontrado no google, foi publicado nos Anais do Museu Paulista.

Fiz um pequeno resumo do artigo, pra não esquecer as idéias centrais, que compartilho com os foristas interessados nessa questão. Segue abaixo.

O artigo "Um olhar sob suspeita", de Annateresa Fabris, publicado nos Anais do Museu Paulista e disponível na internet, além de constituir-se numa aula de fotografia, evidencia como uma concepção fotográfica renovadora, surgida na Rússia nas primeiras décadas do século XX, acabou servindo à propaganda stanilista nos anos 1930.
No início do século, a principal crítica de Aleksandr Rodtchenko concentrou-se na "fotografia a partir do umbigo", com a câmera posicionada na altura do estômago, e na fotografia pictórica como retrato da realidade.
Nesse momento, o fotógrafo e outros artistas russos, entre eles poetas e cineastas, acreditavam que a tarefa da fotografia e também do cinema era "ver e registrar o que o olho humano não vê, mostrar as coisas a partir de ângulos inesperados e em configurações inusuais", afirmou Annateresa Fabris (p. 120). Para eles, essa nova visão era mais adequada para retratar a realidade moderna, urbana e industrial, ao contrário da fotografia pictórica, registro de um passado estagnado.
Lembre-se que, no início do século XX, a Rússia passava por um processo de transformação importante, de decadência de uma aristocracia rural e formas arcaicas de poder, e ascensão de uma classe burguesa junto com a crescente urbanização do país. Esse impacto pode ser acompanhado através dos registros artístico-culturais, a exemplo da peça "O Jardim das Cerejeiras" e outros textos dramáticos de Anton Tchecov, por exemplo.
No conjunto da obra de Aleksandr Rodtchenko "esse olhar perscrutador sobre o urbano" é resultado "do encontro entre a busca de símbolos do progresso - a estrutura metálica da estação, o trem - e a percepção de formas puras e geométricas", estabelecendo uma relação entre "a proposta do artista, o ideário construtivista e a questão política contemporânea", afirmou Fabris (p. 124-125).
Aleksandr Rodtchenko nutria particular interesse pela produção de fotógrafos não-profissionais, fascinou-se com a experiência de um artista e de um arquiteto que utilizaram a câmera como instrumento, não como fim, para configurar esse novo ambiente, essa nova visão, essa mudança de paradigma. Não só se interessava pelas experimentações no campo da fotografia como também defendia a fotografia jornalística, o fotojornalismo, que, na época, constituía-se em "elemento de confronto" à fotografia artística que, em geral, buscava imitar os modelos de Rembrandt, as águas-fortes e as pinturas japonesas, afirmou a autora do artigo (p. 113).
Sob essa perspectiva, Aleksandr Rodtchenko contrapôs-se ao "retrato sintético", baseado numa única imagem de origem fotográfica, e busca uma representação mais realista do indivíduo, com variações e contrastes. Essa nova apreensão pode ser vista na série de retratos de Maiakóvski.
Para obter retratos realistas, o fotógrafo russo utilizava um método particular, segundo depoimentos de contemporâneos, que consistia em conversar, dar voltar em torno da modelo e não avisar o momento de acionar o disparador. Essas técnicas visavam evitar que o fotografado assumisse poses não naturais. Além disso, utilizava todo tipo de iluminação, desde luz natural até lâmpadas elétricas (p. 117).
Na poética fotográfica de Rodtchenko, a fotografia em série é fundamental, afirmou Fabris. Para realizá-las, o fotógrafo primeiro realizava uma pesquisa plástica acerca das formas geométricas e das possibilidades de planos para só depois realizar a série fotográfica. Ou seja, o trabalho não partia de registros meramente ocasionais, mas era fruto de um projeto meticulasamente pensado.
Ao inaugurar uma nova estética e buscar um novo ponto de vista, Rodtchenko almejava a reeducação do olhar através choques visuais capazes de criar uma nova consciência no observador (p. 126) e revolucionar o raciocínio visual (p. 127).
Essa reeducação do olhar não significava distanciar-se do universo cotidiano. Ao contrário, o fotógrafo estava convencido de que a fotografia devia contribuir para uma visão renovada do ambiente em que vive a sociedade pós-revolucionária, então, passa a documentar experiências cotidianas. Como afirmou Fabris, o registro de situações corriqueiras como os pátios dos edifícios, as passagens das estações, os movimentos dos habitantes configurou-se numa "crônica da vida miúda, que ganha um ar poético pelas perspetivas inusuais com as quais é apresentada" (p. 122).
A "Nova Visão", da qual o fotógrafo surgiu como protagonista, se, a princípio, motivou reações contrárias, ganhava novos adeptos na imprensa. A explicação, segundo Fabris, encontra-se no fato de que "o modo de olhar inusitado" "não se coadunava com os pressupostos do 'realismo heróico', propugado desde 1922 pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária, nem com os objetivos da propaganda, está na base do ataque de abril de 1928, fruto direto do novo clima político vivido na União Soviética após a promulgação da industrialização e de coletivização forçada da agricultura" (p. 125-126).
Na década seguinte, a fotografia "Pioneira", causou uma enorme polêmica e foi alvo de censura em 1935 por Ivan Bokhavov que afirmou que ela "'não tem o direito de olhar para cima. Isso carece de conteúdo ideológico. Pioneiras e moças do Komsomol deveriam olahr para a frente', para o terreno político a ser conquistado pela vitória proletária" (p. 130).
Paulatinamente, à estética renovadora de Aleksandr Rodtchenko, fundadora de um novo olhar fotográfico, agregou-se sentido ideológico, em sintonia com as idéias políticas em voga.
Isso derivou do novo lugar da fotografia como arma "particularmente importante" no âmbito da revolução cultural que colocou os fotógrafos de Outubro contra os clichês heróicos propagados pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária como também contra a "nova fotografia", exemplificada nas experiências abstratas de Moholy-Nagy e Man Ray (p. 132).
Assim, "a oscilação entre imagens mais inovadoras e imagens de caráter documental torna-se uma tônica em Rodtchenko", a exemplo das fotografias de temas esportivos que além de representar um símbolo de força, juventude e agilidade também reveste-se de conotação política (p. 133). "Mesmo respondendo a encomendas oficiais, nas quais esposa a ideologia dominante, o fotógrafo não deixa, quando possível, de usar os recursos lingüísticos derivados do Construtuvismo e de uma compreensão alargada das potencialidades da imagem técnica", afirmou Fabris. Essa mudança alterou profundamente a concepção de seqüência, pois, se, até 1928, elas representavam "a possibilidade de configurar narrativas a partir de diferentes ângulos de visão, daí em diante, o epicentro passa a residir na 'determinação de um processo', de acordo com as diretrizes propostas por Trekianov" (p. 135) que, em linhas gerais, defendia uma percepção tradicional do ato fotográfico. Essa orientação merece muita atenção, pois, de certa forma, não é muito diferente das orientações clichês que circulam em grande escala.
Diante desse quadro, conclui Fabris, "os postulados da Nova Visão transformam-se em instrumento ideológico. Normalizados e simplificados, são colocados a serviço da propaganda stalinista e, logo, ao alcance das massas, tendo perdido, entretanto, aquele significado de profunda transformação perceptiva, que o artista defendia nos anos 1920" (p. 137).
Nisso reside a riqueza do artigo, isto é, mostrar como uma estética renovadora perde seu significado revolucionário ao transformar-se em instrumento político e servir a propósitos partidários.

Desculpem-me pelos possíveis erros de digitação e demais, fiz um resumo apressado, nem deu tempo de fazer uma segunda leitura.
« Última modificação: 29 de Março de 2008, 02:06:00 por lambe-lambe »


Chello

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Resposta #1 Online: 29 de Março de 2008, 21:55:40
Interessante. Irei pesquisar e ler com mais calma este material que à princípio me parece muito rico para o aprimoramento do olhar fotográfico.

Obrigado por compartilhar camarada!

Abs
Chello
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lambe-lambe

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Resposta #2 Online: 29 de Março de 2008, 22:47:43
Não há de que camarada.

Se não conseguir ler o material, veja pelo menos as fotografias que estão inclusas no artigo, pois, apesar de ter por volta de 80 anos, ainda hoje elas não só impressionam como continuam sendo inovadoras. A do homem na escaderia do prédio, dizem que é o próprio fotógrafo, deixa a gente zonzo. Imagina ver tudo isso ampliado?

Gostei tanto do artigo que comprei um livro dela chamado "Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico". Depois de ler, se lembrar, digo o que achei. Segue resumo no final do post.
Estou impressionada com a quantidade de material produzido por Annateresa Fabris no campo das artes visuais, em especial sobre fotografia, que não conhecia nem 1/10 das referências. Se você tiver interesse, dê uma olhada aqui, estou selecionando alguns para ler nas férias.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4783974E7


"O retrato fotográfico é uma construção artificial, na qual se encontram as normas sociais correntes e diferentes estratégias mobilizadas pelos artistas contemporâneos, que discutem os conceitos de identidade e de identificação, atestam que as principais modalidades de representação do indivíduo estabelecidas no século XIX - honorpifica e disciplinar - são ainda válidas hoje em dia."
« Última modificação: 29 de Março de 2008, 23:00:53 por lambe-lambe »


Chello

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Resposta #3 Online: 31 de Março de 2008, 19:26:27
Agradeço as indicações, são mesmo interessantíssimas e vou me aprofundar na leitura.
Só uma coisa, te chamei de camarada por achar que é um homem, mas parece que você é mulher.. rss.. perdoe-me o mal jeito!

Um abraço!
Chello
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Resposta #4 Online: 31 de Março de 2008, 20:17:52
Isso não é importante, acho camarada bem simpático.