Vittorio Storaro trabalha com fotografia no cinema, não gosta de ser chamado de diretor de fotografia, prefere o termo cinematógrafo em analogia ao fotógrafo. Nessa entrevista, ele fala das influências da pintura no cinema e de Caravaggio no seu trabalho com luz e sombra e também de questões próprias à iluminação para cinema e teatro que, de alguma forma, pode ser interpretada pelos fotógrafos que trabalham em estúdio.
Estou postando a matéria na íntegra, que é grande à beça, porque o acesso é restrito e, sobretudo, porque vale muito a pena ler, acreditem.
Acho que a primeira sala é a mais indicada para postar essa entrevista porque tem muito conteúdo e trata da arte fotográfica em sua extensão. Em todo caso, postei aqui, mas com pesar porque de papo furado essa entrevista não tem nada.
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O iluminado
O ITALIANO VITTORIO STORARO FALA SOBRE O PARENTESCO ENTRE PINTURA E CINEMA E EXPLICA O QUE APRENDEU COM BERTOLUCCI E COPPOLA
MARIA ANDREA MUNCINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Vittorio Storaro é certamente um dos melhores diretores de fotografia em atividade. Prova disso são os filmes rodados com grandes cineastas europeus e americanos mas também, o que é algo raro, suas teorias sobre a luz e a poética a ela relacionada. Desse ponto de vista ele é um autêntico discípulo do pintor Caravaggio (1571-1610), tema de produção homônima para a TV da qual participou no ano passado.
Mas há outra coisa que o distingue de seus melhores colegas: ele não quer ser chamado de "diretor de fotografia".
Assim, qualquer um que o entreviste ficará desconcertado por essa objeção que, embora aparentemente bizarra, adquire uma lógica própria assim que Storaro, com muita paciência, expõe os seus motivos ao interlocutor intimidado.
A surpresa de quem o escuta, a meio caminho entre a perplexidade e a curiosidade, é imediatamente satisfeita e ampliada quando Storaro conclui dizendo que gostaria de ser definido como "cinematógrafo", por analogia a "fotógrafo": enquanto este escreve com a luz (segundo a etimologia grega do termo), mas com imagens fixas, ele escreve com a luz, mas com imagens em movimento (como se deduz do grego "kinésis", que forma a primeira parte da palavra cinematógrafo).
A insistência no uso desse termo tem mais uma explicação. Quando se roda um filme, diz Storaro, há apenas um diretor no set, que é o cineasta, e não pode haver outro.
Storaro é um conversador muito cordial, que deixa qualquer interlocutor à vontade, mesmo quando se fala de conceitos sobre a luz, de sua importância, do envolvimento total no plano expressivo e criativo, do processo lento e profundamente sentido que leva à reflexão, a ver dentro de si com um olho novo e consciente.
Sua evolução pessoal, que Storaro narra com lucidez crítica e envolvimento apaixonado, enreda totalmente seu ouvinte (e também, é claro, o leitor dos seus livros, como a série "Scrivere con la Luce", Escrever com a Luz).
Romano, 67 anos, filho de um projecionista da Lux Film, entusiasta precoce da fotografia, já aos 18 anos Storaro era um dos melhores alunos do Centro Experimental de Cinematografia de Roma.
Pouco depois, em 1961, estava atrás das câmeras como cinegrafista de "Pugni, Pupe e Marinai" (Socos, Gatas e Marujos), de Daniele D'Anza. Em seguida, foi assistente de "Antes da Revolução" (1964), de Bertolucci, e diretor de fotografia do filme "Giovinezza, Giovinezza" (Juventude, Juventude, 1969), de Franco Rossi.
Daquele momento em diante, tornou-se cada vez mais reconhecido, e a fama do seu talento cruzou o Atlântico, quando passou a trabalhar para diretores como Francis Ford Coppola e Warren Beatty, Michael Apted e Richard Donner.
Obviamente continua trabalhando com italianos e europeus, tanto que assina quase todos os filmes de Bertolucci e do espanhol Carlos Saura, com um currículo que já ultrapassa 40 filmes.
FOLHA - De que modo o sr. buscou recuperar a pintura de Caravaggio com os meios do cinema?
VITTORIO STORARO - O cinema como arte complexa traz em si a arte da pintura, e não há dúvida de que somos o resultado de todos os artistas, de todas as emoções, todas as ideações e criatividade que nos precederam no campo das artes figurativas. Também não há dúvida de que Caravaggio é um dos principais protagonistas da relação entre luz e sombra nas artes figurativas. A princípio me baseei nisso para restituir visualmente sua vida, sua atividade sacra, analisando a relação figurativa que esse artista estabelece com a luz.
No início de sua atividade, a luz é muito difusa, nórdica (ele nasceu em Caravaggio, um povoado na Província de Bergamo). Depois, pouco a pouco, a paisagem se anula, o fundo se torna escuro e dali extrai as personagens colhidas pela luz.
Chega assim à "Vocação de São Matheus", que constitui um momento revolucionário da arte pictórica, uma relação extraordinária entre luz e sombra, com aquele raio de sol que atravessa toda a cena e a divide em duas entidades.
Foi esse traço revolucionário que tentei colocar no centro da história, uma vida passada entre luz e sombra, duas partes que se unem num conjunto harmônico e ao mesmo tempo conflituoso.
FOLHA - O sr. já pintou?
STORARO - Não. Não só não sei pintar mas nem sequer desenhar. Por isso tento me expressar pela fotografia.
FOLHA - Corrija-me se eu estiver errada: até hoje o sr. já participou de cerca de 40 filmes. A pergunta é: por que decidiu trabalhar numa minissérie de TV?
VITTORIO STORARO - Na realidade, "Caravaggio" não é uma minissérie de TV, mas um filme para a televisão, um projeto realizado em dois episódios de cem minutos cada um. Mas o primeiro filme para a TV de que participei foi "A Estratégia da Aranha", de Bertolucci.
Em "Caravaggio", o que mais pesou foi a história, a reconstrução de época, mesmo buscando a maior proximidade possível com o homem Caravaggio, com sua vida, seu sofrimento, com o fato de ter sido considerado um "pintor maldito", a dor da criança que perde o pai aos seis anos e, aos 18, a mãe, o trauma do menino provavelmente violentado aos 12 anos pelo primeiro professor...
Traumas e feridas que carregou pela vida inteira, conflitos internos que seguramente influíram em sua pintura, toda feita de luz, que se pode entender como consciência, e de obscuridade, que se pode entender como inconsciente.
Estou convencido de que, em Caravaggio, a sombra é mais importante do que a luz, luz que ele faz emergir da sombra, da escuridão.
Quando, seis ou sete anos atrás, a produtora Ida Di Benedetto me propôs o projeto do "Caravaggio", comecei a estudar as cenas e os copiões à medida que eles evoluíam e se modificavam com o tempo e percebi que aquela história me pertencia bastante, quase demasiadamente, tanto que eu a aceitaria qualquer que fosse o formato: um desenho, um grafite na parede de uma caverna, uma história em quadrinhos, um filme ou um episódio televisivo, enfim, qualquer coisa.
Lembro que, durante meu curso de fotografia, um professor nos disse: "Como é impossível saber tudo de tudo, lembrem-se de que a coisa mais importante é saber onde buscar as coisas que precisamos conhecer. Haverá um momento em que vocês se interessarão por algum tema: então escavem nele o melhor que puderem".
Mas logo entendi que a melhor escola para mim era justamente meu trabalho, ou seja, uma série de oportunidades que me permitiam aprofundar, cada uma, um tema a ser pesquisado, indagado, estudado.
Por exemplo, em "O Conformista", de Bertolucci, eu teria pela frente a Itália dos anos 1930, a figura de Alberto Moravia, a arquitetura racionalista, a pintura de Giorgio de Chirico.
Ou, para citar outro exemplo, também de Bertolucci, "O Último Imperador", que me levou a estudar a cultura chinesa. Ou, então, a cultura árabe, em "O Céu Que Nos Protege", ou a russa, em "Pedro, o Grande".
FOLHA - Quais são as diferenças (se é que existem) entre trabalhar para o cinema e para a TV?
STORARO - Do meu ponto de vista não vejo diferenças, pois em ambos os casos se trata de imagens em movimento. A distinção entre "para a tela grande" e "para a telinha" me parece cada vez mais carente de sentido, já que as telas têm encolhido nos multiplex, enquanto as telas de TV e os videoprojetores aumentam de tamanho.
É por isso que tenho em mente um projeto de unificação dos formatos de cinema e TV, que chamo de Univisium (que em latim significa justamente "visão única").
Por exemplo, tomemos "O Último Imperador", de Bertolucci, filmado em cinemascope, um formato com predomínio da dimensão horizontal, muito apreciado pelos espectadores das salas cinematográficas por seu poder de envolvimento.
Na TV esse tipo de formato, para se adaptar aos padrões televisivos, passa por cortes que incidem em seus extremos, direito e esquerdo, cortes que evidentemente alteram os enquadramentos do filme, às vezes ocultando parte dos atores. Para contornar esse grave e irritante inconveniente, pensei num formato que esteja em equilíbrio entre o do cinema e o da TV, constituído substancialmente por dois quadrados, ou seja, com a largura duas vezes maior que a altura, mais ou menos como a pintura "A Última Ceia", de Leonardo da Vinci. Usei esse formato, por exemplo, para Carlos Saura em "Tango" e em "Goya", e também em "Mirka", de Rachid Benhadj. Atualmente, sempre com o formato Univisium, estou filmando "Eu, Don Giovanni", mais uma vez para Saura.
FOLHA - Luca Ronconi, com quem o sr. trabalhou em "Orlando Furioso", é um diretor de teatro. Existe uma relação diferente da iluminação para o teatro e para o set de filmagem?
STORARO - Minha experiência com o teatro chamou minha atenção para o fato de que a iluminação não era fruto de uma pesquisa específica, que corria o risco freqüente de perturbar o sentido das cenas, da recitação dos atores e, no caso da ópera lírica, dos cantores. O que me interessava era intervir criativamente na iluminação aos olhos dos espectadores. Assim, minha expressão não sofria nenhuma alteração técnica, mas agia diretamente, apenas com a iluminação. Mas, após essa experiência, também compreendi que a minha expressão se completava justamente com o uso de todas as tecnologias que pertencem à palavra "cinematografia". É por isso que me considero um "cinematógrafo", que é, como sugere a etimologia da palavra, alguém que "escreve com a luz" no cinema, ou seja, em movimento, com um tempo e um ritmo, a fim de contar uma história.
FOLHA - E quanto à ópera?
STORARO - Já havia tido experiências com a música lírica quando trabalhei para Bernardo Bertolucci, que em seus filmes quase sempre insere referências musicais extraídas de óperas líricas, o que é típico de um bom emiliano nascido em Parma, onde há essa espécie de templo da música lírica que é o teatro Regio. Na ópera, os ritmos distintos, sejam de Verdi, Puccini ou de outro compositor, me levam a criar iluminações diversas, que dependem da história, mas também da estrutura musical que a sustenta, além dos movimentos ligados ao desenvolvimento cênico, igualmente funcionais para os ritmos da narrativa e da música.
FOLHA - Podendo escolher entre tomadas internas e externas, quais preferiria?
STORARO - Mais que escolher entre internas e externas, a grande diferença talvez esteja entre o espaço fechado do estúdio e os lugares reais. Explico. O lugar onde estamos conversando é um interior, mas está articulado ao exterior, já que ao redor há uma relação interno/externo (janelas, portas, entradas e saídas), tudo de algum modo ligado à luz solar que cresce e decresce. Nossa intervenção consiste em acrescentar, difundir ou tentar limitar a grande energia visível da luz solar, que muda segundo as estações, as horas do dia e até a angulação -isto é, o ponto de vista com o sol à frente ou atrás.
Essa variabilidade pode ser compatível ou não com nossas escolhas prévias, em razão da cena que vamos filmar. No segundo caso, precisamos contornar as condições adversas, tentando modificá-las de algum modo com os meios técnicos de que dispomos. Ao contrário, quando estamos em um interno/interno, como em um estúdio cinematográfico, ficamos completamente livres e podemos recriar aquele tipo específico de visão, mesmo que se trate da reconstituição de um espaço externo. Um exemplo: para a última cena de "Eu, Don Giovanni", foi reconstituída uma praça com um canal veneziano mediante um sistema especial já experimentado em "Duna" [série de TV] e utilizado também no "Goya" de Saura: a cenografia não é construída em três dimensões, mas em duas, ou seja, é feita apenas de imagens fotográficas elaboradas no computador (proporções, cores etc.), impressas em folhas de plástico colocadas em estruturas específicas e iluminadas de tal modo que o espaço parece tridimensional, mesmo não sendo nada mais que folhas de plástico com imagens impressas.
Em seguida, com a iluminação, é possível mudar a visão de acordo com as várias necessidades. Tudo isso com uma enorme economia de custos.
FOLHA - Mas não é melhor trabalhar em locações reais?
STORARO - As reconstituições são habituais, sempre foram feitas e sempre se farão, mas, quando se pode, é sempre melhor estar o mais perto possível dos lugares reais, por uma questão de cultura.
Quando rodamos "Pedro, o Grande", estávamos num pequeno vilarejo a três horas de Moscou, com uma temperatura de -20C. Uma coisa é ver a respiração dos atores se condensando enquanto falam, outra é filmar em um estúdio aquecido. Reconstruímos certos interiores de Moscou (e o modelo estava bem próximo de nós), já que não era possível levar uma trupe cinematográfica para dentro do Kremlin.
No entanto o cenógrafo era russo, falava-se russo, circulavam revistas e livros russos, ou seja, a cultura russa estava ao redor e dentro de nós. O mesmo aconteceu nos filmes ambientados na China ("O Último Imperador"), na Arábia Saudita ("O Céu Que Nos Protege") ou no Butão ("O Pequeno Buda").
FOLHA - O sr. poderia falar sobre os problemas discutidos em "Escrever com a Luz"?
STORARO - Trata-se da obra que resume as fases fundamentais da minha pesquisa. Como não concluí estudos específicos, senti a necessidade de preencher minhas lacunas, sobretudo no campo da história da arte e dos problemas da arte, trabalhando como autodidata. Daí as leituras, audições de música, leitura de poesia, filmes e história do cinema, arquitetura etc. Tomava notas, tentava instruir-me também em filosofia, comecei a freqüentar mais os museus e as galerias e tudo isso me ajudou a compreender melhor não só o significado das coisas, mas também o porquê da emoção que a luz me suscitava e, de maneira diversa, a sombra; as várias vibrações na presença de várias cores... Tudo isso eu aproveitei à medida que avançava em meu trabalho e depois incluí em minhas observações, redigidas quando filmávamos "Pedro, o Grande" na Rússia, recuperando inclusive reflexões de quando rodei filmes mais antigos, como "O Conformista" ou "O Último Tango em Paris".
E, como sou um escritor de imagens, me dei conta de que deveria inserir imagens naqueles textos sobre a luz, de modo que se pudesse entender melhor meu pensamento. Então organizei o material escrito incorporando muitas fotografias e referências a textos filosóficos, a começar por Platão e indo até os ensaios mais específicos de Eisenstein, enriquecendo-os com observações minhas.
No final dos anos 70, após ter filmado "Apocalypse Now", de Coppola, parei para refletir sobre meu trabalho, todo ele centrado nos valores da luz, e então descobri a cor e passei a estudá-la, escrevendo e me respaldando em muitas outras obras. Trabalhando com Bernardo Bertolucci e mais tarde com Coppola ("Tucker - Um Homem e Seu Sonho"), pude utilizar com maior conhecimento de causa a simbologia e a fisiologia da cor. Continuei minha pesquisa sobre o equilíbrio dos elementos, como nos filmes de Beatty ("Reds", "Dick Tracy", "Politicamente Incorreto"), buscando expressar emoções e caracterizar as personagens numa espécie de vocabulário visual. Concluído "O Último Imperador", senti a necessidade de refletir mais um pouco e retomei meus estudos, partindo do conceito de equilíbrio dos filósofos gregos, que Aristóteles e Tales viam como o conjunto harmônico dos elementos da vida. Fiz um trabalho de investigação sobre o equilíbrio entre elementos opostos, como homem e mulher, consciente e inconsciente, sobre as cores vermelha, verde e azul, sobre a luz e a sombra.
Um terceiro percurso leva diretamente ao "Pequeno Buda", com as considerações sobre todos os estilos aplicados às imagens dos filmes que fiz - imagens que pus ao lado do texto. Desse material surgiu a idéia de montar uma mostra fotográfica com as fotos mais significativas do meu trabalho no cinema.
Assim nasceu a exposição itinerante "Escrever com a Luz -Duplas Impressões entre Fotografia e Cinema", que, depois de percorrer algumas cidades italianas, irá para a Suíça, a Grécia e a Espanha. Espero levá-la também ao Brasil.
Continua...