Paulo Cê
Vou tentar dar conta da forma como vejo. Embora vá escrever coisas como isto é assim ou assado, peço que leia tudo acrescentando "minha opinião é que isso é assim ou assado".
Veja, fotografia É arte?
Não, não é. Fotografia é e tem sido uma espécie de artesanato tecnológico.
Vou então mudar a pergunta:
Pintura é arte?
Não, não é. Pintura é um artesanato usando tintas e cores. O cara que pinta um anúncio em um muro não é artista. O cara que pinta uma ilustração para um livro de biologia não é um artista, é um tipo de artesão, e o conteúdo artístico é "latu sensu", ou seja, usando a palavra arte de forma permissiva.
Contudo, Pintura é uma das sete artes. Toda pintura? Não, somente uma pequeníssima parte dela, parte essa que tem compromissos específicos e diferentes dos compromissos utilitários ou de mera distração.
Voltando à fotografia, repetindo a pergunta, podemos dizer o mesmo. Fotografia como um todo não é arte, é apenas um artesanato tecnológico artístico, que pode ser auxiliar em uma série de atividades (como a pintura) e cria o imaginário visual desta época;
Mas, assim como a pintura, a fotografia PODE ser arte. Uma parte da fotografia inegavelmente é arte: Salgado, Bresson, Adams, etc.
Evidentemente, observando essas fotografias desses fotógrafos que citei observa-se uma densidade de mensagem muito maior do que na fotografia ilustrativa, por mais bem feita que seja a fotografia ilustrativa. Uma fotografia do Capa ou do Bresson pode suportar seguidas visitas e entreter, envolver, enredar a cada visita.
Isso significa que são fotografias especialmente vistosas? Que são espetaculares? Não. Significa serem profundas, serem fotos que não se esgotam em um olhar, que não narram algo simples.
Você me pergunta: fotografias macro de inseto são arte?
Eu lhe respondo: podem ser, embora seja um tema mais tendente à fotografia vistosa e curiosa que à arte, mas nada impede que sejam -embora eu mesmo não conheça exemplos de fotografia artística macro. Conheço fotografias espetaculares, coloridas, etc, mas não artísticas. É um ramo extremamente técnico, é um artesanato dificílimo, mas isso não significa que seja arte.
De outro lado, fotógrafos como o Salgado passam a vida com uma Normal ou uma GA modesta... Fotografam o mundo ao seu redor, cenas da vida, erradamente entendidas como "fotografia de pobreza" pois não é exatamente a pobreza que fotografam, mas uma espécie de espanto profundo sobre a existência humana, sobre a humanidade, onde os fotografados são o que são e ao mesmo tempo figuras transcendentais.
Muitas vezes não se pode dizer serem fotografias de alto desafio técnico. Muitas vezes, como no célebre O Beijo, nem nítidas são. Mas O Beijo pode ser visto por anos provocando o mesmo espanto, e a macro mais espetacular esgota-se depois de examinada algumas vezes, e aí o espectador fica em busca de outra macro, mais espetacular ainda.
Mas O Beijo, esse não lhe faz desejar outra mais espetacular. Ao vê-la ela basta, ela é suficiente, ela não oferece novidade, não oferece brilhos, cores, perfeição. O que ela oferece?
Ela propõe ao espectador vivê-la, misturar-se a ela, sentir aquele instante fugidio, perder-se esteticamente na ambigüidade que tem.
Para usar uma palavra aparentemente simples, ela é poética.
Mas, o que é ser poético? Ser poético é oferecer ao espectador, por palavras, figura, sons,um tipo especial de evocação. Veja, a publicidade é evocativa, mas não é poética. A evocação feita pela publicidade é o de uma vida afirmativa e idealizada, é de coisas vistas como perfeitas. São belas imagens muitas vezes, mas não poéticas. Mas a fotografia poética não faz isso, não apresenta uma vida idealizada. Ela apresenta a vida e lhe convida a ver como a vida aparentemente comum é espantosa, é profundamente perturbadora. Ela pega o mundo, que por hábito desaprendemos a ver como extraordinário e a ele restitui sua transcendência. Ela restaura o espanto, o espanto com o existir, com as múltiplas formas de existir.
A ninguém está assegurado fazer arte. Mas tentar fazer, tentar fazer não a repetição dos padrões estéticos da publicidade mas outra coisa que seja liberdade em relação a eles, isso é vital, pois quem não tenta não faz por acaso. Pensar a respeito, lutar contra os limites de nossa maneira condicionada de olhar e assim tentar desvelar no que parece simples aquilo que nunca será simples: o espanto da existência.
A arte visa capturar a atenção do espectador e acariciar seus sentidos, mas de tal forma que não permita a esse espectador recair na forma habitual de percepção. Em oposição, as fotografias publicitárias, os jingles na música, esses tentam confirmar o ideário da época, o condicionamento mesmo, os desejos impartidos pela mídia.
A arte tem uma longa história. É bastante difícil dizer o que ela é, mas observando a sua história e os seus exemplo chagamos a uma idéia do que seja, ainda que de difícil enunciação. A arte é feita da mesma matéria mental do restante do pensamento, com as mesmas organizações perceptivas necessárias ao mundo normal, mas é feita invertendo os sinais, deslocando os esquemas, e assim desabituando o homem e permitindo que o mundo, o velho mundo que sempre é novo, mostre-se novo.