Trechos do livro “Cartier-Bresson: O olhar do século” de Pierre Assouline, Editora L&PM.
Pág. 304:
“Também é inútil tentar descobrir se, para tirar aquela foto em que um homem pula por cima de uma poça, Atrás da Gare Saint-Lazare, Pont de l’Europe (1932), ele ficou escondido 24 horas na esperança da repetição de uma cena que vislumbrara. Toda a sua obra advoga a perspicácia contra a displicência do olhar. Sua capacidade de concentração não é um dom, mas uma disciplina sobre si mesmo. Ele acredita menos no talento do que no trabalho e desconfia dos dispersivos brilhantes.”
Pág. 302:
“Como ele faz aquelas fotos? Da seguinte maneira:
Ele passeia, clica furtivamente e continua a passear como se nada tivesse acontecido. Essa agilidade provavelmente evita várias encrencas. O dançarino dentro dele rodopia em torno de seu par inconsciente. Depois o esgrimista assume o comando, troca seu alvo e logo se retira. É incrível que uma pessoa tão nervosa tenha conseguido manter seu sangue-frio em situações tão tensas.
O fotógrafo é um batedor de carteiras. Ele se imiscui nos dramas, registra flagrantes delitos e depois se retira, sem compartilhar do destino das pessoas cujas almas apreendeu. Mas é necessário que, como Cartier-Bresson, ele seja a descrição em pessoa para não passar por provocador. Até mesmo das naturezas-mortas ele se aproxima na ponta dos dedos. Com o tempo o caçador se faz pantomima. E o homem fugidio se torna uma gaivota transparente.
Mais de um amigo se já testemunhou isso. Caminhando ao lado dele na rua, vê distraidamente uma mulher passar à direita; no instante seguinte, ao voltar o olhar para frente , se dá conta de que Cartier-Bresson tivera tempo de perceber algo de excepcional, se afastar, dar um passo de dança, tomar sem ser tomado e voltar para seu lugar a fim de continuar a conversa, voltando a andar como se nada tivesse acontecido. Ele não goza de um sexto sentido, mas de um terceiro olho. Daí sua capacidade de fazer parte das coisas, sua intuição daquilo que a natureza tem de ativo. Ele vê a miséria dos homens onde ninguém a vê. E assim esse malabarista capta o mundo em flagrante, a passos de veludo e com o olhar cortante, como ele mesmo diz.
(...)
O instinto não autoriza a premeditação. Lancinante, o reflexo não permite o cálculo na composição. Ele é subterraneamente comandado por uma vasta cultura artística dominada à perfeição. Cartier-Bresson logo chega ao ápice da criação, com os resultados que conhecemos, porque o encadeamento entre a percepção, a síntese e o disparo repousa num conhecimento da imagem assimilado há longo tempo.”
Pág. 311:
“A fotografia em cores? Uma coisa indigesta, a negação de todos os seus valores plásticos. Ele não gosta e nunca gostou dela, apesar de experimentá-la – em pouca quantidade e a título experimental, é verdade – durante seu período oriental, sem esperar a comercialização do Ektachrome em 1959. Para ele a cor será sempre domínio exclusivo da pintura. Ele diz isso explicitamente no pós escrito de suas fotos de Shanghai e Nanquim:
‘Que fique claro que eu guardo minha Plaubel para as fotos a cores quando se trata de uma capa, de pessoas estáticas ou de alguma coisa importante, mas considero praticamente impossível conseguir boas cores (quero dize do ponto de vista do pintor) para imagens de ação (notícias etc.) com uma câmera que não de 35mm. Algumas reportagens são possíveis a cores (com boas cores conforme concebidas em toda pintura séria e não em cartões-postais)...’
Se às vezes consentiu com ela, não foi num espírito de compromisso, mas de concessão, por estrita necessidade, para responder a uma encomenda de algum editor, como para Vive La France, ou às exigências de Paris-Match, como na China. Em 1954, ele fez uma capa da revista Camera, uma foto em cores do Sena, a única que lhe parece boa, ainda que considerada sem sentido, por ser puramente estetizante. Segundo sua lógica, não é possível falar de cores naturais, que só podem oferecer uma visão edulcorada da realidade, pois se trata de uma noção que só tem sentido para marchands e patrões da imprensa. Àqueles que o interrogaram em 1958 sobre sua relação com a cor, depois de uma década de prática, seguia dizendo que, para ele, era apenas um meio de documentação, certamente não um meio de expressão. Cartier-Bresson sempre se colocou diante da cor como pintor, não como fotógrafo. Dividido entre cor e valor, como os artistas diante da natureza, ele sempre privilegia o elemento mais vital e mais veloz. Mesmo sendo preciso convir, com Walter Benjamin, que a natureza que fala à câmera fotográfica é diferente da que fala ao olhar. Era assim quando ainda não se dominava a técnica da cor, mas continuará sendo assim no futuro. O fato é que Cartier-Bresson não se lembra de jamais ter sentido uma emoção com uma foto em cores. Não devemos considerar seu pós-escrito de 1985 como uma correção a ‘O instante decisivo’. Apenas uma especificação:
‘A cor, em fotografia, se baseia num prisma elementar, e por enquanto não pode ser diferente, pois ainda não foram descobertos os procedimentos químicos que permitirão a complexa decomposição e recomposição da cor (em pastel, por exemplo, a gama de verdes comporta 375 tonalidades!). Para mim, a cor é um meio de informação muito importante, mas bastante limitado no plano da reprodução, que continua sendo química e não transcendental e intuitiva com na pintura. Diferente do preto, que tem a gama mais complexa, a cor, ao contrário, oferece uma gama totalmente fragmentária.’
Nem mesmo a química mais refinada mudará isso. Apesar dos progressos técnicos da cor, o poder de evocação do preto e branco continuará a seus olhos para sempre intacto.