Se você já se preocupou, ainda que não tenha um como eu, esse tópico pode lhe interessar, pois mesmo quem não tenha, não está excluído de pensar tais questões e nem de acompanhar o percurso de quem busca ou já encontrou seu próprio caminho.
Vou explicar como cheguei a essa questão ontem especificamente. Estou realizando umas leituras obrigatórias, na minha área, por um motivo muito específico. Estou tentando me concentrar nessa leitura, para não perder o foco da discussão, mas mesmo elas me estimulam a refletir sobre a fotografia e a resgatar muitas questões que já foram levantadas aqui sobre composição fotográfica e fotografia autoral, de modo geral. Também em linhas bem gerais, na minha área existe um debate acirrado e muito bem fundamentado sobre se a escrita da história é arte, é literatura, é narrativa ou se deve ser encarada apenas como uma ciência, ainda que não seja exata nem disponha de um único método.
Pois bem, o autor que me remeteu às discussões passadas no campo da fotografia e realizadas aqui nesse fórum, e que também pode suscitar novas reflexões, chama-se Peter Gay. É alemão, naturalizado americano, e tem uma obra vastíssima sobre as questões de estilo e natureza da história, além de promover discussões entre história e psicanálise, entre outros assuntos. Não estou recomendando que ninguém leia esse autor, porque apenas em poucas páginas, num livro em específico, ele trata de um tema que é caro à produção artística, seja ela escrita ou visual, e nos estimula pensar certos temas, que também nos são caros, tais como estilo, genialidade, tradição, inovação etc.
Vou compartilhar as idéias do autor com vocês. Para isso preferi dividi-las em 5 questões centrais e espero que elas sirvam muito mais para reflexão do que para inflexão.
1) Em primeiro lugar, o que é “estilo”?
Estilo, para Peter Gay, não é apenas uma característica inerente à personalidade do criador (vou usar uma designação mais genérica, mas pode ser substituída por fotógrafo), mas algo mais amplo que integra vários mundos como o individual e o social, o público e o privado, o costume e a cultura. Em resumo, diz o escritor, “o homem vive em vários mundos ao mesmo tempo, mais notadamente em sua esfera privada, no âmbito relativamente íntimo de seu ofício e no amplo domínio público de sua cultura. Tal como as diversas dimensões do estilo, esses mundos se entrecruzam e se penetram continuamente: a pessoa privada interioriza os critérios do ofício e as normas da cultura; o ofício, de modo geral, serve à cultura e expressa com obediência seus ideais mais genéricos”. Ou seja, um estilo literário maduro, ou de qualquer outro setor das artes, “é uma síntese de todos esses elementos, combinados de maneiras várias; é, pois, a um só tempo individual e social, privado e público, uma combinação de modos herdados, elementos tomados de empréstimo e qualidades exclusivas”.
2) Qual o aspecto negativo do romantismo no que concerne às questões do “estilo” e à produção artística?
“Se, como tendiam a pensar alguns românticos, o estilo fosse tão-somente a roupagem externa de estados interiores, o transbordamento espontâneo das fontes de criatividade, ele traria informações sobre a psique de um escritor, e nada mais. Mas esses românticos se equivocavam”.
3) O autor acredita na genialidade artística defendida (e por que não criada?) pelo romantismo?
Não. Primeiro porque Peter Gay define estilo como a equação de vários mundos e não apenas uma manifestação espontânea do criador e segundo porque acredita que o estilo não só pode como deve ser adquirido, é uma construção social que engloba vários elementos.
Portanto, para o autor, o estilo pode ser apreendido. Os escritores, e aqui podemos novamente expandir tais reflexões para o trabalho do fotógrafo, “não são estilistas de nascença; eles modelam seus estilos por meio de um esforço constante para superar a dependência e encontrar suas vozes próprias. Normalmente, o aprendiz de escritor [...] descobre o estilo que lhe é apropriado seguindo de início, e depois abandonando, modelos de sua admiração; a imitação parece constituir uma fase essencial no processo de autodescoberta. Nem sequer em princípio, portanto, a escrita [a forma de expressão] provém inteiramente do coração; em sua maior parte, provém diretamente de outros livros [do contato com outras formas de expressão]. A singeleza mais elevada surge mais tarde, fruto de uma faina que oculta a faina” [essa frase pra mim é central e pode ser uma explicação para muitas confusões nessa área e, por isso, merece um destaque a mais]. Ou seja, o estilo é “ato da vontade e exercício da inteligência. É o tributo que a capacidade de expressão paga à disciplina”. Noutras palavras “o estilo é a utilização de meios para um fim, embora, como bem sabemos, também possua seu lado passional e faça suas revelações involuntárias”. Em síntese, “para a quase totalidade dos demais escritores, o estilo, além de dote, é conquista e o estudo do estilo empreende a crônica e a análise dessa conquista”.
4) Qual o papel da tradição no processo de apreensão do estilo?
“A escrita [vamos pensar a escrita como algo mais amplo, como forma de expressão] é uma atividade que se realiza na tessitura de uma tradição literária [ou de qualquer outro setor artístico]. À exceção de alguns inovadores, a maioria dos escritores, mesmo os maiores dentre eles, falam numa linguagem que se tornou familiar por intermédio dos outros. Mesmo os que têm como meta a ininteligibilidade, como os poetas dadaístas, encontram seus vocabulários no contexto de uma sociedade, por mais seletos que sejam; sua ininteligibilidade é a maneira de se comunicarem – de forma inteligível – com os outros de seus círculos. A atitude de um escritor [do criador] frente à sua tradição pode ser dócil, ambivalente ou rebelde. Ele pode escrever da maneira que escreve porque, antes, outros escreveram dessa sua maneira ou porque, antes, outros não escreveram dessa sua maneira. Qualquer que seja sua atitude, ele não pode ficar indiferente à atmosfera que, pela escolha de sua profissão, é obrigado a respirar” [outra idéia que merece um destaque a mais].
5) Dizer que determinada pessoa tem estilo significa atribuir-lhe um adjetivo elogioso? Ou seja, as definições de estilo vêm imbuídas invariavelmente de uma conotação positiva?
Não. E para sustentar isso o autor cita a “balcanização” da produção literária nos tempos do consumo de massa onde se costuma dividir as tarefas e pensa-se legítimo “pedir a pesquisadores que pesquisem, a escritores que dêem às pesquisas uma forma de enredo, a estilistas que acrescentem os toques refinados”. Segundo o autor, “tal balcanização divide fatalmente o que se deveria unir; os produtos que tais métodos lançam no mercado são, como todos sabemos, mercadorias com embalagens atraentes, enfeitadas com trocadilhos obsessivos, superlativos gastos, episódios falsos. O estilo, aqui, é um subproduto do empreendimento comercial não é de forma alguma o homem, e sim o sistema”.
As passagens acima, colocadas entre aspas, foram selecionadas da introdução do livro "O estilo na história", de Peter Gay. O que está entre parênteses são inserções minhas.
Bem, deixa eu voltar aos meus afazeres.